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EDITORIAL

Vitória de Trump: uma noite cai sobre os EUA e o mundo?

Por Robério Paulino, Professor da UFRN e Candidato a Prefeito de Natal pelo PSOL nas eleições de 2016

                                                                                              Como a crise econômica, a acelerada desindustrialização e a frustração com Obama – com a consequente rejeição a Hillary –
explicam a vitória de Trump?  “É a economia, estúpido”.  

 

A recente vitória de Trump nos Estados Unidos assombrou muita gente em todo o planeta, como se fosse o prenúncio do fim do mundo, a confirmação do início de uma noite tenebrosa, de caos e incerteza. O pessimismo tomou conta de todos aqueles que lutam pela liberdade e por um mundo melhor. O El pais cunhou logo após o anúncio de resultado: “A noite cai sobre Washington”. Alguns chegam mesmo a falar em falência do projeto civilizatório, um sinal de retrocesso e de entrada na barbárie, de ingresso numa nova era de fascismo global. A vitória de Trump seria uma derrota dos imigrantes, das mulheres, uma vitória do discurso do ódio, do machismo, da homofobia, do racismo, da xenofobia.

Ao analisarmos o processo pelos discursos de Trump contra os imigrantes e pelo apoio dos movimentos das mulheres, dos negros, dos latinos, a Hillary, aparentemente aquele seria mesmo o maior significado da vitória de Trump. No entanto, sem negar que a vitória do candidato republicano revela um inequívoco avanço, ou pelo menos a manutenção, de ideias retrógradas nos EUA, seu significado é muito mais complexo e contraditório do que essas avaliações impressionistas de primeira hora indicam. A rejeição causada em todos nós pelos discursos xenófobos de Trump não devem nos impedir de procurar as razões da vitória do candidato republicano em águas mais profundas, nas severas mudanças estruturais pelas quais vêm passando a economia, a estrutura produtiva e o tecido social dos EUA nas últimas décadas e, especialmente, na avaliação do fracasso, ou da  negação, do governo democrata de Obama e Hillary em atender as demandas da população.

Para compreender o que se passa nos EUA, precisamos recorrer a pequeno giro pela história recente daquele país, explicar como as grandes crises e transformações econômicas podem gerar mudanças inesperadas no rumo da política. Nas eleições presidenciais dos EUA, em 1992, quando tudo parecia indicar que George Bush pai, então com uma popularidade próxima de 90% na abertura do processo, iria ganhar as eleições, em função de sua atuação agressiva na Guerra do Golfo, eis que surge um azarão, o jovem Bill Clinton, que terminou por vencer o pleito. O segredo da vitória do democrata foi a orientação de seu marketeiro, James Carville, que mostrou o caminho para vencer: centrar a campanha nas questões que afetavam mais diretamente a vida dos eleitores, que envolviam seus empregos, sua fonte de renda, seu nível de vida, sua sobrevivência. Foi isso o que habilmente fez Trump agora. Carville cunhou na época a frase “É a economia, estúpido”, que virou um case de sucesso de marketing eleitoral estudado em todo o mundo.

Portanto, mais uma vez, é na economia e na mudança na vida das pessoas que devemos buscar pelo menos parte da explicação da derrota de Hillary e Obama. Não foi o discurso contra os imigrantes que deu a vitória a Trump, mas o que está por trás disso, sua campanha contra o fechamento ou transferência de milhares de fábricas para o exterior, contra a perda de milhões de empregos, contra a globalização, explorando habilmente a frustração do “sonho americano” para a população.

Desindustrialização
Já há algumas décadas, os EUA passam por uma severa transição estrutural, de deixar de ser um país industrial para transformar-se em um país de serviços, especialmente financeiro e comercial. O país vive um profundo processo de desindustrialização. Empresas norte-americanas gigantes até a década de 1980, como ITT, GE, IBM, faliram, desapareceram ou encolheram. Outros milhares, como a HP, a Apple, fecharam suas fábricas nos EUA e encomendam a produção na Ásia, especialmente na China, mantendo no país apenas seus setores de tecnologia, projeto e design. Muitas montadoras norte-americanas não se preocuparam em fazer nenhum muro, como o que agora propõe Trump na fronteira, quando mandaram suas fábricas para o México, em busca de menores salários e maiores lucros. Cidades antes industriais como Detroit, Buffalo ou Saint Louis, viraram cemitérios de fábricas, com seus galpões fantasmas sendo demolidos e transformados em condomínios ou parques. Outras centenas de comunidades estão completamente desestruturadas com o fechamento de fábricas onde trabalharam várias gerações.

Todo esse processo de transferência da produção para países de força de trabalho mais barata, somado à aplicação das técnicas toyotistas, com a introdução de máquinas substituindo trabalhadores, levou à perda de muitos milhões de empregos antes bem remunerados no país. E junto com os empregos vão a fonte de sobrevivência, os planos de saúde de milhões de famílias, já que naquele país só os tem quem está empregado. Michael Moore retratou bem isso em seu filme Sicko – SOS Saúde. Hoje, parte dos milhões de norte-americanos desempregados perdeu também suas casas e vive em acampamentos, em parques ou áreas públicas. O setor de serviços, além de pagar salários bem menores, não absorve toda essa massa de famílias arrasadas pela globalização, pelo “livre comércio”, comandado por Wall Street.

Analisando com cuidado seus discursos, percebe-se que denunciar esse processo foi um dos segredos de Trump. Ele atacou duramente a desindustrialização, a perda de empregos, a globalização, os altos lucros das grandes empresas com o “livre comércio”, comandados pelo estabilishment político e empresarial associado à Wall Street. Apesar de ser empresário e gabar-se de ser rico, explorou muito melhor que Hillary esse tema. Visitou muitas cidades e fez discursos nas portas de fábricas ameaçadas de fechamento contra a perda de empregos.

Quem acha que Trump obteve o voto apenas dos setores conservadores, engana-se. Ele conseguiu os votos de boa parte da classe operária, e mesmo de alguns sindicatos, num processo muito parecido com o Brexit na Grã-Bretanha. Infelizmente, os trabalhadores desses dois países, ao não perceberem o que de fato acontece, se voltam contra os imigrantes, como se esses fossem os responsáveis pela perda de seus empregos. Enquanto havia empregos abundantes e ninguém “de casa” queria fazer as tarefas mais sujas e difíceis, os imigrantes foram bem aceitos. Agora, com os empregos desaparecendo, os imigrantes viram o bode expiatório. Trump explorou muito bem esse sentimento, o medo e a revolta. Hitler também soube usar habilmente o desespero dos trabalhadores alemães com as consequências da Grande Depressão iniciada em 1929, que arrasou a economia alemã e a vida de milhões.

Desigualdade Social
Essa profunda transformação econômica nos EUA levou a uma igualmente severa transformação no tecido social no país. Se, a partir da década de 1930 até a década de 1980, o 1% mais rico, segundo dados do próprio Bureau of Census, correspondente ao IBGE no Brasil, ficava com algo em torno de 8% da renda nacional, hoje essa parcela se elevou a mais de 20%, sendo que alguns estudiosos falam em até 25%. Enquanto poucos enriquecem como nunca, milhões andam para trás, sequer têm empregos, salários e planos de saúde, o que causa revolta. Foi isso que levou o movimento Occupy Wall Street a falar em nome dos 99% contra o 1%.

Obama, tendo Hillary como secretária, em nenhum momento dos dois mandatos, se opôs a tudo isso. Não fez oposição firme ao fechamento de empresas, à perda de milhões de empregos, como havia prometido em sua primeira campanha. Os dois nada ofereceram aos trabalhadores. Na verdade, governaram em sintonia com Wall Street, com as grandes empresas e bancos do país. Não defenderam os interesses dos operários, grande parte deles negros, dos desempregados, dos imigrantes, das mulheres, da comunidade LGBT, igualmente afetados por todo esse processo.

Obama também não cumpriu sua principal promessa da primeira campanha, de montar um sistema de saúde pública. Fez apenas uma espécie de PROUNI da saúde, o tímido Obama Care, um arremedo. Hillary foi parte de tudo isso. Os trabalhadores, os imigrantes, os negros, as mulheres, os jovens, a comunidade LGBT, não tinham nenhum motivo para apoiar nem Trump nem tampouco Hillary, nem deviam tê-lo feito.  Bernie Sanders errou ao chamar voto em Hillary. Segundo o New York Times, Hillary perdeu em função da redução dos votos dos negros e dos jovens para ela, decorrente da frustração com Obama.

Além disso, nas redes sociais, Hillary é vista como antipática, mentirosa, hipócrita, belicista, esnobe e ligada ao setor financeiro dos EUA. A família Clinton está umbilicalmente associada à Wall Street, sendo que a própria filha do casal, Chelsea, é casada com um dono de fundo de investimentos. Wall Street bancou mesmo luxuosas residências para o casal e parte de sua campanha. O candidato do estabilishment era Hillary, não Trump, um azarão. Essa é parte da explicação do porque as bolsas de valores caíram em quase todo o mundo com a vitória de Trump, quando normalmente ocorre o contrário com vitória de um candidato conservador. Infelizmente, como ocorreu no Brasil em relação ao golpista Temer, muitos trabalhadores, jovens e negros que votaram em Trump não percebem que ele pode ser ainda pior.

Belicismo
Muitos têm medo também de que Trump, que seria um louco, aperte o botão nuclear, inicie a Terceira Guerra Mundial. Mas Trump, na verdade, não é mais belicista que Hillary. Lembremos que foi Hillary que partiu a Líbia ao meio. Foi Hillary que comandou o cerco à Rússia no caso da Ucrânia e que insultou Putin, enquanto Trump o elogia. Foi Hillary que desenhou todo cerco militar de contenção à China, contra as pretensões expansionistas daquele país no Pacífico. Hillary tem mantido uma posição de apoio incondicional ao Estado de Israel, dizendo, em cartas que vazaram, que se deve aniquilar grupos como o Hamas, mesmo que isso custasse a morte de centenas de milhares de palestinos. Parte do financiamento de sua campanha veio de grandes empresas israelenses. Na verdade, muitos têm medo de que Trump seja um louco sem controle à frente do maior arsenal nuclear do mundo. Mas Hillary, com seu belicismo agressivo, seria talvez um perigo igual ou maior que Trump.

Para tranqüilizar um pouco os que têm tanto receio, é preciso frisar que decisões militares, como iniciar uma guerra, não são tomadas por um único governante.  O botão nuclear faz parte de um circuito elétrico em série, no qual vários interruptores, controlados por outros indivíduos, precisam estar ligados. E ninguém quer ser incinerado por um arsenal nuclear russo, que continua ativo e vem sendo modernizado. Mesmo durante a Guerra Fria, os falcões norte-americanos não demonstravam vocação para suicidas.

Existe ainda o medo de que Trump desate uma série de ataques contra os imigrantes, contra os negros, as mulheres, a comunidade LGBT. Mas é preciso frisar que há uma diferença entre o que um candidato, de direita ou de esquerda, diz na campanha e o que de fato poderá fazer dentro de um sistema político bem estruturado, muito definido por leis e regras.

Diferentemente de muitos países do mundo, particularmente da América Latina, onde sempre imperou o autoritarismo do executivo, a democracia capitalista nos EUA tem uma série de contrapesos entre os poderes, mecanismos sólidos estabelecidos já desde a própria fundação do país. Trump não poderá fazer tudo que disse e devemos mesmo duvidar se quer fazer o que prometeu. Por exemplo, até como empresário que é, com certeza não vai se opor energicamente ao processo de desindustrialização e perdas de empregos que denunciou como um populista, sendo o mais provável que procure rapidamente uma acomodação com Wall Street e com os que controlam a política financeira e comercial externa dos EUA. Em relação aos imigrantes, vai baixar logo o tom, até porque teve muitos votos nessa comunidade, ganhando a eleição na Flórida, onde é grande a presença de latinos.

Como conclusões desse processo, precisamos, em primeiro lugar, evitar o impressionismo, ir para além das aparências, e identificar os elementos mais profundos que explicam o fenômeno da virada de Trump. Como cunhou Carville, deve-se buscar nos fatores econômicos que afetam a sobrevivência de milhões de trabalhadores e famílias a explicação para esse processo. Em segundo lugar, perceber que mais do uma vitória de Trump, foi Obama e Hillary que perderam, pelo que deixaram de fazer em defesa do povo e dos trabalhadores norte-americanos, ao governarem exclusivamente para os mercados, para Wall Street.

Essa é uma lição que precisamos estender também ao Brasil. O afastamento de Dilma não decorreu primeiramente das pedaladas fiscais ou da corrupção, mas antes de tudo de ter metido o país numa grave crise econômica, que lhe quitou apoio popular e passou a anular os poucos ganhos dos governos do PT, aplicando a política neoliberal sob a condução de representantes dos mercados financeiros como Joaquim Levy. Isso gerou desencanto e revolta, jogando parte dos trabalhadores na mão da direita. Entender mais profundamente esses processos em nada diminui nossa decisão de lutar firmemente contra o que representam Trump e Temer como ameaças para os trabalhadores e para os povos. Mas é essencial ir além das aparências, para não repetirmos os mesmos erros no futuro.