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Um paradoxo da esquerda brasileira

São Paulo – Movimento Vem Para Rua faz ato em defesa da Lava Jato e a favor do Impeachment na Paulista, região central.

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por: Valerio Arcary, colunista do Esquerda Online
Sejamos sérios: o impeachment não teria sido possível sem a Lava Jato.

Não se pode, portanto, ser contra o impeachment e apoiar a Lava Jato.

Tampouco, se pode ser a favor do impeachment e contra a Lava Jato.

Nenhuma destas duas posições faz sentido. Porque o pacote é indivisível. Falta coerência, nexo, coesão interna.

E, no entanto, temos estas duas posições, nem sempre muito bem fundamentadas, ou mesmo, razoavelmente, explicadas, na esquerda marxista brasileira.
O que é um paradoxo. Um paradoxo, dizem os dicionários, é “o oposto do que alguém pensa ser a verdade” ou uma situação que contradiz a intuição comum”.

A chave da resposta a esta contradição lógica está na evidência de que a Lava Jato é muito popular. E o que é muito popular, porque unifica os humores das diferentes classes sociais que, em outras circunstâncias, estão divididas, é raro e tem muita força.

A Lava Jato é popular porque a imensa maioria do povo está exasperada contra a corrupção. Mas, ser a favor da luta contra a corrupção, uma reivindicação democrática, justa e progressiva não é igual, e não deve se confundir com ser a favor da Lava Jato.
A campanha política que culminou no impeachment foi tão bem sucedida, justamente, porque se iniciou dissimulada, camuflada, mascarada pela Lava Jato.
Sim, a Lava Jato tem muito apoio. Acontece que nem tudo que mobiliza os trabalhadores é progressivo, e muito menos, revolucionário. Ao contrário, as massas populares podem se mobilizar, transitoriamente, por palavras de ordem reacionárias. 
Ou seja, mobilizarem-se contra os seus interesses.
Acontece até com relativa frequência. Será temporário, efêmero, passageiro, provisório, não indefinidamente. Mas, acontece.

A consciência dos trabalhadores oscila sempre.

Ela é uma expressão da luta entre as ideias da classe dominante e as lições duras de suas experiências práticas de vida.

Só para relembrarmos um exemplo, a mobilização de apoio ao Papa João Paulo II no estádio do Morumbi, no início dos anos oitenta, foi uma mobilização muito popular, porém, ultra-reacionária. Juntou dezenas de milhares de trabalhadores e não se ouviu um só “Abaixo a ditadura”. O objetivo da visita do Papa, depois da onda de greves que sacudiu a ditadura militar no final dos anos setenta, era apoiar o projeto de transição gradual, lenta, controlada que estava sendo operado desde Brasília por Golbery e Figueiredo, com o apoio de Carter e, depois, de Reagan, no contexto da última etapa da guerra fria.

Temiam o perigo de uma ruptura.

Queriam evitar que a ditadura fosse derrubada.

Trabalhavam associados com Washington para garantir um projeto inspirado no Pacto de La Moncloa, que garantiu a transição no Estado Espanhol, sem a queda da monarquia, sem que se abrisse uma crise revolucionária.

Lula fez questão, nas cerimônias fúnebres do Papa polonês, de lembrar que esteve presente, o que, para dizer o mínimo, foi triste, ou lamentável.

Felizmente, a maioria da esquerda brasileira de então não caiu na armadilha. Não convocou para ir ao estádio do Morumbi ouvir o Papa polonês Woytila.

Outro exemplo: quando Tancredo faleceu em 1985 ocorreram grandes manifestações, em São Paulo, e as massas comovidas saíram aos milhares para saudá-lo. O mesmo aconteceu, também, em Minas Gerais. Muitos se perguntavam até se Tancredo não teria sido assassinado. Embora muito massivas foram ações dos setores mais atrasados e confusos.

Podemos lembrar, também, o apoio popular intenso ao Plano Cruzado, em 1986, que teve apoio de grupos com origem na esquerda, como o MR-8, ou, até pior, ao Plano Real em 1993. Ambos muito populares.

Nada deveria ser mais importante para um socialista, portanto, do que favorecer a organização e mobilização independente dos trabalhadores. Independente quer dizer separada, apartada e autônoma da classe dominante. A luta pela organização independente é uma luta contra a influência que as ideias burguesas têm sobre o conjunto da sociedade, portanto, também, sobre parcelas dos próprios trabalhadores.

Um programa é a forma de traduzir a defesa de interesses.
A primeira responsabilidade de um agrupamento socialista é procurar expressar a defesa dos interesses dos trabalhadores. Se os trabalhadores, ou a juventude, ou qualquer outro segmento social popular duvida das suas forças, o esforço de uma política marxista é levantar o programa e a palavra de ordem para a ação que melhor corresponda aos seus interesses, mas, ao mesmo tempo, que corresponda ao seu estado de espírito e à sua disposição de luta: a proposta mais revolucionária não é aquela mais “à esquerda”: Marxismo não se faz com critérios cartográficos.

A geografia é uma ciência linda.
Mas, coletivos socialistas que definem suas posições pelo critério de delimitação não são sérios.

A melhor proposta é aquela que coloca as massas em movimento.

Mas, de forma independente.

Não como um vagão auxiliar do trem dirigido pelo inimigo de classe

A política marxista tem, portanto, limites de classe.

Não deve ser um vale tudo.

O empirismo é mal conselheiro.

Esse é o problema da palavra de ordem: 
“Lava Jato até o fim”.

Há um plano político por trás da Lava Jato.

Esta operação não é uma investigação independente.

Ela é indivisível do Fora Dilma e Fora PT, que levou milhões às ruas para entregar o poder ao Congresso. 
Que o devolveu a Temer.

Sem que houvesse um só cartaz rabiscado por algum distraído em manifestação alguma exigindo: “Temer deve ser presidente, e chamar Meirelles para governar”, ou “ Façam o ajuste fiscal cortando verbas públicas da educação e saúde para tranquilizar os credores da dívida!”, ou ainda, “Reforma da Previdência com idade mínima de 65 anos, já!”.
Não ocorreu a ninguém, entre as centenas de milhares que saíram às ruas vestidos de verde-amarelo, com as camisetas da seleção, levantar estas reivindicações.
Gritavam: “A nossa bandeira jamais será vermelha”, um slogan anticomunista. primitivo. Havia, é certo, aqueles que pediam que o Exército tomasse o poder. Pegaram carona. O ambiente reacionário os absorveu.
A relativa autonomia técnica de procuradores do Ministério Público e de delegados da Polícia Federal pode cegar a perspectiva da classe média que estava enfurecida até três meses atrás. Mas, não deveria ofuscar ninguém na esquerda de que a Lava Jato esteve articulada, desde o princípio, a uma estratégia política que tem ramificações internacionais.

A burguesia esteve dividida, seriamente, em relação a este projeto durante, pelo menos, um ano e meio. Esperou para verificar se o segundo mandato de Dilma Rousseff poderia fazer o ajuste.

Só a partir do final de 2015, foi se constituindo uma maioria. E houve frações burguesas derrotadas, justamente, porque temiam o preço da Lava Jato.

Mas, a esquerda socialista precisa resistir à pressão da maioria burguesa que venceu na luta pelo golpe parlamentar “a la paraguaia”.
Esses são os que estão atrás do biombo da Lava Jato.

Eis o plano: criminalizar a direção do PT, e deslocar o bloco político que ofereceu sustentação aos seus governos, desembaraçando-se, se necessário, também, dos líderes das oligarquias e frações mais atrasadas e corruptas, para abrir um caminho para uma nova hegemonia. Conseguiram unir a a maioria da burguesia, mesmo com uma fração do empresariado indo para a cadeia, apoiando-se na classe média, para tentar levar até o fim um ajuste liberal: quem o dirige é Meirelles.

Sejamos claros: nunca houve e não haverá capitalismo sem corrupção, nem aqui, nem na Suécia, para que o exemplo seja claro. As taxas da infecção podem variar, mas o vírus é mutante, se adapta, resiste. É um parasita da acumulação de capital.

O regime de presidencialismo de coalizão favoreceu a metástase.

Por muitas e variadas razões: a oportunidade de negócios milionários nas privatizações; a impunidade histórica que protege a riqueza rápida; a inexistência de um partido burguês liberal de dimensão nacional; processos eleitorais, estupidamente, caros; e, claro, as peculiaridades brasileiras do processo de seleção dos quadros políticos dirigentes.

Podemos denunciar a corrupção sem nos deixarmos impressionar pelo apoio popular que têm juízes, policiais e procuradores.

Podemos denunciar a corrupção, inclusive dos dirigentes do PT, sem apoiar a Lava Jato.

Os limites de classe da Lava Jato não tardarão a ficar claros.

A esquerda socialista não deve cair nesta armadilha.


Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil