Os secundas chegaram para ficar: resistência se aprende na escola

Por: Lucas Fagundes*, de Porto Alegre, RS

Lembro como se fosse hoje do primeiro ataque real sofrido durante a ocupação. Segunda semana de ocupação, tensão, preocupação e um descuido, no meio da tarde, um precursor do movimento Desocupa, incentivado pelo governo que perseguia as ocupações com métodos violentos, entra na escola e ameaça bater num ocupante. O desespero e a calma se veem lado a lado, um gritando mais que o outro, até que o agressor resolve recuar. Inconscientemente, uma lição: a autogestão não é uma utopia, precisávamos assumir o controle de toda a escola. Naquela altura, já estávamos com mais de uma centena de escolas ocupadas no Rio Grande do Sul e estudantes vivendo diariamente situações como essa. Como chegamos nessa nível de mobilização?

Os dois principais gatilhos das ocupações foram os ataques de Sartori (PMDB) e aliados reacionários, que vieram através da PL 44, legislação que visa vincular a educação estadual as Organizações Sociais, a antessala da privatização como vimos no caso da saúde e a PL 190, mais conhecida como Lei da Mordaça, do ‘sem-partido’ Marcel Van Hatten (PP/MBL).

Junto do repúdio às ações dos poderes Executivo e Legislativo, havia uma indignação coletiva inspirada e baseada nos processos que o Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Goiás e outros estados viviam há meses. A gurizada repudiava as ações da BM, por isso falávamos nos atos sobre a desmilitarização das polícias, éramos contra a RBS e companhia, gritávamos pelo fim da mídia golpista e também tentamos fazer das ocupações e protestos de rua espaços de combate ao machismo, racismo e a LGBTfobia.

“Se o pensamento nasce livre, aqui ele não é não”: a autogestão das escolas e do movimento
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A juventude secundarista gaúcha viu nas suas ocupações um grande potencial de mudança diante do descaso do governo com a educação. Fizemos nós por nós. Observando que o Brasil vive um tempo de ataque à democracia e criminalização dos movimentos sociais, os estudantes se sentiam muito mais seguros e ‘à vontade’ dentro das escolas, para expressar suas reivindicações. Ocupar, fazer do nosso espaço de estudo precário e do nosso próprio corpo a forma de resistência. Essa foi a nossa opção.

As ocupas ficaram marcadas por serem espaços construídos em base a uma democracia participativa, diferentemente da democracia brasileira, que está ao lado dos burgueses e não incentiva a participação popular. Era difícil ver uma ocupação em que pessoas não tinham função definida ou organizada por uma comissão, seja ela de limpeza, segurança, mídia, articulação com outras escolas, entre outras. E pra concluir a construção desse espaço, assembleias diárias eram conduzidas pelos ocupantes, definindo todos os passos e ações em conjunto com um amplo espaço pra debate.

Demos muita importância à nossa segurança. Já sabíamos pelas experiências nos outros estados que a repressão poderia chegar, seja pela ação da Brigada Militar, ou pelo Desocupa. Administramos quem entrava e quem saía, o horário das atividades, a comunicação com a mídia, toda a organização interna do espaço. Nossa ideia era pensar em tudo o que poderia fazer com que nós tivéssemos a integridade física ameaçada e fazer o contrário. Pensamos em autodefesa. Organizamos barricadas com classes e cadeiras, usamos a ‘inteligência’ para nos proteger.

Tendo em vista uma necessidade de organizar-se entre si, os estudantes independentes formaram o Comitê de Escolas Independentes (CEI) que, junto às entidades estudantis, foi um dos canais de diálogo com o governo durante as ocupas, mesmo que com uma linha completamente oposta. A principal bandeira do Comitê era desenvolver nos estudantes a capacidade de representarem a si mesmos fugindo das burocráticas entidades.

Lições do dia a dia das ocupas na atual conjuntura nacional
A primeira lição é uma conclusão de que os estudantes também fazem parte da classe trabalhadora pelo fato de que muitos deles hoje em dia precisam ajudar em casa e sustentar também uma parte da família, como é o meu caso. Por isso, a nossa identidade com as causas dos professores e funcionários de escola, por exemplo.

A segunda lição vem nos mostrar que o que a gente vive hoje no Brasil não é uma real democracia. Temos hoje no nosso país uma democracia burguesa e representativa, a partir da qual os estudantes são obrigados a se submeter a diversas reuniões para negociarem direitos. Aliás, na negociação na Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), debatemos com o secretário de Educação e o poder Judiciário numa sala com quase três dezenas de estudantes apresentando pontos de vista e pressionando pela democratização daquele espaço com métodos parecidos com os que usávamos nas escolas. A nossa ordem era subverter a ordem.

Por fim, vejo que muitos secundaristas viram de outros olhos a questão de organizar o movimento e também se organizarem individualmente, pois rechaçamos práticas que não condizem com as nossas ideias e o perfil do movimento. Nas ocupações teve a presença de entidades estudantis (Juntos, UBES, UGES, UMESPA) que não conseguem se adaptar aos alunos que almejam ter um protagonismo, muitas delas, quiçá todas, fazem com que o estudante seja ‘representado’ perante o governo por diretores que trancam escolas pra serem secundas ‘para sempre’, diretores que não sabem a realidade que os secundaristas passam e que insistem em negociar seus direitos.

Aliás, é importante lembrar que a linha oportunista das entidades acabou dividindo o movimento. Eles fecharam um acordo com o governo sem consultar as bases na terça-feira, 14 de junho. Diante disso, os secundas organizados no CEI decidiram ocupar a Secretaria da Fazenda na quarta-feira para dizer que o movimento seguia de pé. O resultado foi uma repressão brutal da BM, mas que foi rechaçada pela população, obrigando o governo a retomar as negociações e se desculpar nos jornais. Hoje, os secundaristas maiores de idade que ocuparam a SEFAZ sofrem um duro processo de criminalização e acusação por parte da Justiça Estadual, mas nesse dia nós fizemos história.

A história nos ensina: criminalizam, mas nós resistimos. Agora é derrotar a Reforma do Ensino Médio
É importante que analisemos o que se passa na nossa sociedade quando temos a classe trabalhadora indo às ruas, ocupando espaços públicos, lutando pelos direitos. Em Porto Alegre, desde 2013 vemos um duro processo de criminalização daqueles que organizavam o Bloco de Lutas pelo Transporte Público. Vimos, como falei, a criminalização dos ocupantes da SEFAZ sem fundamento ou prova alguma das acusações. Agora, diversos estudantes no Paraná são perseguidos, torturados, sequestrados e espancados para tentar levar o movimento a exaustão, tática muito comum nas práticas militares.

Ainda há uma extrema necessidade de organizar uma resistência. A maioria dos movimentos populares que iniciam nas ruas, ou com as ações diretas como as ocupas, não consegue manter a resistência à altura do aparato que a burguesia detém. A mídia, o Estado na sua força de repressão, as empresas que controlam o capital se unem e fazem com que todo e qualquer levante popular seja obrigado a criar uma resistência que dure o máximo de tempo possível.

Se em São Paulo os secundas derrotaram a reorganização de Alckmin, se aqui nós fizemos Sartori recuar com as suas medidas, agora é hora de nos unirmos no Brasil inteiro contra a Reforma do Ensino Médio de Michel Temer. Mas, só isso não basta, precisamos pensar na nossa estratégia a longo prazo, ao mesmo tempo que organizamos nosso programa e projeto de sociedade.

Esse, imagino, é o principal dilema dos movimentos sociais. Qual é a saída ou a estratégia pra organizar a resistência? Identifico que a organização dessa arma que o povo detém, que é a resistência nas ruas, nas escolas, nas faculdades só consegue se manter após um longo, cansativo e intenso trabalho de base conscientizando as massas daquilo que leva ela às ruas, daquilo que leva o povo a organizar ocupações, ações radicalizadas e tudo aquilo que vemos hoje.

*Lucas é estudante do Tubino. Matheus Gomes, colunista do Esquerda Online, que durante a ocupação era estagiário do corpo docente da escola, colaborou com a produção do artigo