Metamorfose de Kafka e a alienação no capitalismo

Por: Suely Corvacho

Uma grande obra pode ser interpretada a partir de inúmeros ângulos. É o caso da composição de Kafka, Metamorfose, que já foi explorada do ponto de vista estrutural, biográfico, sociopolítico, pós-moderno, entre outros. O livro narra a história de um jovem caixeiro-viajante, Gregor Samsa, que acorda transformado em um inseto. De provedor de sua família (pai, mãe e irmã), Gregor se transforma em estorvo. A inicial tolerância dos parentes para com o inseto vai gradativamente se transformando em repulsa até que um dia “seu pai lhe desferiu um violento golpe por trás” (KAFKA, 2001, p. 42). Indesejado, ferido e abandonado por todos, Samsa sucumbe e seus restos mortais são varridos pela criada.

Michel Löwy, intelectual marxista, dedica o livro Franz Kafka: sonhador insubmisso para “pôr em evidência a dimensão formidavelmente crítica e subversiva da obra de Kafka” (LÖWY, 2005, p. 12). Especificamente sobre Metamorfose, defende que, para compreender “essa célebre e aterrorizante fábula sobre o ‘totalitarismo familiar’, cabe lembrar que Kafka, em sua Carta ao pai, queixa-se de que este o considera um ‘parasita’ e um ‘inseto” (LÖWY, 2005, p. 71).

Löwy afirma também que o conflito com o totalitarismo não é apenas expressão de um problema familiar, mas está relacionado ao contexto histórico mais amplo. Por um lado, o autoritarismo é a marca da cultura política das instâncias de poder do Império Austro-Húngaro, do Kaiser à figura do pai. E, por outro, “toda uma geração de jovens intelectuais judeus nascidos no final do século XIX, atraídos pela visão romântica do mundo e aspirando intensamente a uma vida dedicada à arte, à cultura ou à revolução, vai romper radicalmente com a geração dos pais burgueses”. (LÖWY, 2005, p. 63).

Kafka identifica conexão entre o “poder sem limites” do pai e do Estado, uma vez que obedecem a uma mesma lógica. Neste conflito, seu lugar é entre os subalternos, conforme se percebe a partir de suas palavras em Carta ao pai. Referindo-se ao tratamento brutal que o pai dispensa aos empregados, Kafka afirma: “Isso tornava a firma insuportável para mim; ela me lembrava demasiado minha própria situação perante você (…). É por isso que eu pertencia necessariamente ao partido dos empregados”. (LÖWY, 2005, p. 63). Ainda que os dados biográficos e históricos esclareçam muitos aspectos de Metamorfose, vale acrescentar uma informação relacionada à tradição literária.

Metamorfose e o diálogo com a tradição
Ovídio, poeta romano, escreve, no século I d.C., Metamorfoses, coletânea de relatos sobre transformações ocorridas em tempos imemoriáveis. No livro I, após apresentar a origem do mundo, o poeta descreve a criação do homem:

Faltava ainda um animal mais nobre do que estes (mencionados) e mais capaz de mente elevada e que pudesse dominar sobre os outros. O homem nasceu; ou aquele artista das coisas, origem de um mundo melhor, (o) fez (o criou) com semente divina, ou a terra (ainda) nova e recentemente separada do ar elevado retinha elementos do céu afim (criado com ele); o nascido (filho) de Japeto plasmou esta (plasmou-a) tendo (-a) misturado com as águas dos rios, à imagens dos deuses que regem todas as coisas; e enquanto os outros animais encurvados olham para a terra, deu ao homem um semblante elevado e ordenou (-lhe) que contemplasse o céu e que levantasse aos astros olhares altivos. (OVÍDIO, s/d, p.24-5)

Metamorfose, título escolhido por Kafka, não é casual, remete ao texto de Ovídio, assim como Ulisses, de James Joyce, evoca a Odisseia, de Homero. Em outras palavras, alguns autores do romance moderno adotam o mesmo título de obras clássicas, para que o leitor se lembre de uma quando ler a outra. Com essa chave de leitura, recordando o glorioso destino do homem, concebido por Ovídio, é que devemos adentrar Metamorfose e examinar a transformação de Gregor Samsa:

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. (KAFKA, 2001. p. 13)

O infeliz inseto, cujas pernas para o ar estão em descoordenado, é uma imagem potente para revelar o triste fim a que chegou a humanidade após séculos. Enquanto em Ovídio, prevalece uma visão otimista, em que o homem tem o rosto voltado para o céu para olhar altivamente os astros; em Kafka, predomina o pessimismo, cuja expressão é Gregor Samsa “regredido” à condição de animal, condenado a olhar para o solo. Além disso, em Ovídio, o destino do homem é dominar os demais animais, já, em Kafka, o inseto não controla nada, sequer suas próprias pernas.

A metáfora apresenta, pois, a situação do homem que foi gradativamente perdendo contato com sua dimensão mais humana. No modo de produção pré-capitalista, o trabalhador é explorado, mas seu saber se mantém preservado, ele percebe claramente que seu trabalho é responsável pela produção, a alienação é apenas do corpo. No capitalismo industrial (e também no financeiro), a situação se modifica drasticamente.

Em primeiro lugar, o trabalhador não se reconhece no produto, ele passa a ser uma engrenagem da grande máquina projetada pelos especialistas e comprada pelos patrões. O produto não evoca nada, sua relação com o processo produtivo está definido por um contrato no qual ele vende a sua força de trabalho e o patrão a compra. É, portanto, o valor do salário que passa a ser a medida de seu reconhecimento. Em segundo lugar, o trabalho é o lugar da purgação, é o fardo da sobrevivência. O trabalhador só se realiza em suas atividades animais: comer, dormir, copular. Por último, o trabalhador não se sente ligado aos demais homens. Por não se reconhecer no trabalho, ele não reconhece parte essencial do ser humano enquanto espécie, sua vida não está ligada à dos demais. Em síntese, alienado de seu trabalho, de sua humanidade e dos outros homens, a alienação é total no capitalismo.

Daí a pertinência da criação kafkaniana. Alienado totalmente, o inseto no qual o homem se transformou acaba sendo varrido para fora da história se não pode mais trabalhar. Metamorfose trata, pois, de um mundo desumanizado no qual a literatura só pode ter um papel: um livro tem interesse quando é “um soco no crânio que nos desperta […], uma machadinha que rompe em nós o mar de gelo”, nas palavras de Kafka. (LÖWY, 2005, p. 15).

Fontes bibliográficas
LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.
KAFKA, Franz. A metamorfose /e/ O veredicto. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2001.
OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Maximiano Augusto Gonçalves. Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, s/d.