De cara no asfalto: denúncia e esperança em tempos de crise

Por: Rafael Za, de São Paulo, SP

Muitas vezes, do meio de um tempo de desesperança, escuridão e solidão profunda, surge, de lugares para aonde havíamos nos esquecido de olhar, um novo impulso em direção à resistência contra um estado de coisas que tenta nos triturar imperiosamente. Às vezes, é um filme; às vezes, um discurso; muitas vezes, música. Não haveria como caracterizar de outro modo o disco De cara no asfalto, novo trabalho do cantor e compositor Paulinho Tó.

Sabemos, no entanto, que o discurso nunca é constituído de uma voz única, há muito se foi o tempo da crença no gênio, que trancado em seu quarto deduz do vazio a inspiração criadora. Por isso, antes de apresentar o artista de fato, permitam-me uma digressão.

Em 1971, três anos após o AI-5 e em meio a um dos períodos mais repressivos da Ditadura Militar, encabeçada na época por Emílio Garrastazu Médici , Chico Buarque lançou um de seus discos mais importantes: Construção. O disco foi o primeiro no qual Chico se afastou da estética musical fortemente ancorada no samba tradicional e nas marchinhas de carnaval para encarar a difícil tarefa de reproduzir esteticamente a atrofia da vida sequestrada pelo regime militar.

Dois anos mais tarde, Fabrizio de André, cantor e compositor italiano, lançaria uma obra que deixou marcas profundas na música popular italiana: Storia di um impiegato. O disco narra a história de um empregado que decide se juntar à militância política revolucionária após ouvir uma canção sobre Maio de 68.

Os dois músicos são considerados, nos dois países, representantes máximos da arte política e de resistência contra um período cindido entre a esperança da revolução e a ameaça de um modo de produção desumano travestido de farda. Não por acaso, o mesmo período da história foi classificado nos dois países com exatamente a mesma expressão: “anos de chumbo”.

Faço esta pequena digressão porque os dois compositores são para Paulinho Tó a primeira fonte de inspiração na elaboração de sua poética musical. Influência, no entanto, que não pressupõe imitação.

Sim, é verdade que nos dois músicos há a preocupação em fazer um retrato de uma época. É verdade, também, que os dois assumem um pondo de vista da resistência contra o sistema e da busca pela emancipação e igualdade humanas. Do mesmo modo, os dois têm uma preocupação com a poesia e com a métrica que transcende a composição de letras que se veem apenas como mero acompanhamento desinteressado da melodia e do ritmo.

Mas Paulinho Tó soma a todas essas características uma multiplicidade de modos de tratamento musical e uma variedade de personagens e vozes que descrevem o atual momento pelo qual passamos no país. O assunto, tratado nessa multiplicidade, é um só: o nosso tempo, tempo de crise e de golpe.

Por seu álbum desfilam políticos sem escrúpulos, um Black Block, retirantes, moradores de rua, vítimas da violência policial e ativistas. Personagens que ora se retratam como “eu”, ora são definidos pelo atento observador de fora. De milionários à classe média, que nunca fez e nunca fará parte da burguesia, pauperizada pela crise que se recusa a enxergar.

É um disco que tem a pretensão de, como diria Adorno ao se referir à poesia lírica, alcançar o universal através do individual, com a diferença de que o individual, aqui, não é um eu-lírico na forma de um personagem, mas de um momento histórico.

O título se apresenta como a expressão sintética da representação do nosso tempo, um “diagnóstico de época” diriam os filósofos. O asfalto é a imposição do urbano, o destino final do povo desgarrado. Ao contrário de Chico, que podia referir-se sem muito esforço à figura do trabalhador rural e seu universo bem constituído, Paulinho sabe que, após o êxodo rural massivo, as tensões sociais passaram a se concentrar na cidade.

A terceira faixa do disco, “Black Block na caatinga”, lida justamente com a impossibilidade de se tratar o famélico rural no isolamento do latifúndio, pois ele é parte integrante do modelo de produção de fome na cidade, reverso da mesma moeda da desigualdade produzida pelo capital. Por isso, que é simultaneamente um “Black Block na caatinga” e um “cangaceiro na metrópole”, acompanhado por um repente distorcido pelas guitarras explosivas que emulam os coquetéis Molotov.

Cada faixa, aliás, tem uma musicalidade própria, em profunda conexão com o tema tratado, variando entre samba, marchinhas, rock, repente, bossa nova, funk e até o recitativo “Dá-lhe borracha”, inspirado em “Sábado” de Vinícius de Moraes, que sintetiza o nosso sentimento de desassossego em linhas de texto que se justapõem, mostrando ora o desespero, ora a alienação.

Na faixa “Funk do Mané”, vemos com uma clareza incômoda a figura fantasmagórica do humano deixado às margens da cidade, que, ainda que dentro dela, vê-se obrigado a se arrastar como um trapo levado pelo vácuo dos caminhões passantes.

Outro mérito do álbum é conseguir articular, além de temas, visões e estilos musicais, uma variação de tom, que, se por um lado é desesperador no “Funk do mané”, é extremamente jocoso e irônico na “Marcha da terceirização/Que segredo tem a China”, na qual Paulinho tem a rara habilidade de unir marcha de carnaval a um comentário de economia política, sem que se perca a coloquialidade do discurso. Neste caso, a variedade de tom não fica fora do tom, e a unidade do disco é garantida pela unidade do tema.

Musicalmente, o disco incorpora também, a cada faixa, influências musicais da MPB e do rock dos anos 60 e 70 com sonoridades novas, que parecem ressoar guitarras e teclados de Radiohead e Los Hermanos. As harmonias não são simples e absorvem a dissonância como parte constitutiva do discurso. Paulinho sabe que todo som ou palavra bela pressupõe um desconforto em contraste com a dureza da vida.

É um disco ambíguo, que se, por um lado, fascina e estimula pela qualidade lírica e musical, por outro, joga-nos na cara uma realidade áspera, a realidade do asfalto como ponto final de uma vida esvaziada de sentido.

No entanto, no percurso que vai da voz solitária, empobrecida e desiludida da primeira música “No Tranco” até a última, “Maré”, sobra, ainda que de maneira aparentemente tímida, um eco de esperança, que aponta para uma saída coletiva, na qual a única possibilidade de redenção é juntar-se à maré da rebeldia e cantar em uníssono: “nas águas do mesmo oceano/ no barco revés desse engano/ a gente segue remando, segue remando”.

 

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