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Colunas

O massacre da memória

Silvia Ferraro

Feminista e educadora, covereadora em São Paulo, com a Bancada Feminista do PSOL. Professora de História da Rede Municipal de São Paulo e integrante do Diretório Nacional do PSOL. Ex-candidata ao Senado por São Paulo. Formada pela Unicamp.

Por: Silvia Ferraro, colunista do Esquerda Online

“O Robocop do governo é frio, não sente pena”*

Não bastou que, até hoje, após 24 anos, nenhum dos culpados pelo massacre do Carandiru não tivessem sido penalizados. A começar pelo governador na época, Luiz Antônio Fleury Filho, que não foi responsabilizado e que mantém a vida política integrando o diretório do PMDB. O único que havia tido a pena definida, o Coronel Ubiratan Guimarães, foi absolvido cinco anos depois pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e ainda chegou a se candidatar com um final de número 111, fazendo apologia ao massacre.

Mas em alguns momentos da história, a impunidade não é suficiente para satisfazer os comandantes do sistema. Os vencedores necessitam inverter os papéis, recontar os fatos do próprio ponto de vista, fazer com que as vítimas se transformem em vilões.

Então, o crime que deveria recair sobre o Estado, a responsabilidade pelos 111 corpos que deveria ficar para sempre estampada na imagem da corporação que mais mata gente no mundo, vira do avesso, através de uma simples frase do desembargador. “Não houve massacre, houve legítima defesa e cumprimento do processo pela PM”.

Com esta frase, Ivan Sartori quis apagar da memória das atuais e das futuras gerações que a polícia de São Paulo cometeu uma chacina, um banho de sangue, um crime bárbaro. Talvez a justiça paulista e sua corporação armada esteja incomodada com a quantidade de jovens que não cansam de gritar nas ruas a cada vez que eles cruzam com os policiais militares: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”.

O incômodo deve ser tão grande, que o Tribunal de Justiça de São Paulo, através do tal desembargador conseguiu fazer a proeza de dizer que 74 homens fortemente armados mataram 111 homens desarmados em legítima defesa. Tribunal conhecido pela subserviência aos interesses políticos e econômicos dos poderosos, lembremos do caso do Pinheirinho e de tantos outros julgamentos que este tribunal nunca deu ganho de causa aos trabalhadores.

É tão aviltante à mentalidade de qualquer pessoa que consegue raciocinar, que hoje os próprios jornais da burguesia mostraram incômodo com a versão construída pelo desembargador.

A palavra massacre carrega o significado de uma guerra injusta, de uma força muito superior com um aparato estatal altamente equipado, assassinando os que não tinham força para resistir e, por isso, não sobreviveram. E é justamente este significado que a Justiça e a PM paulista querem banir da história. No lugar do massacre, querem voltar com a ideologia das ‘classes perigosas’, dos pretos e pobres que são uma ameaça à ordem em qualquer circunstância, o que justifica a existência de uma polícia militarizada, pronta para a guerra contra o ‘perigo’ que ronda as periferias de São Paulo, ou as manifestações da juventude secundarista.

A resistência contra essa decisão da anulação do julgamento dos 111 do Carandiru não tem a ver somente com lutar pela ‘justiça’ para as centenas de famílias das vítimas que devem se encontrar revoltadas neste momento. O inconformismo e a consequente ação contra a anulação e a possível absolvição dos PMs tem a ver com a luta contra este sistema jurídico e policial carcomido pela podridão da classe que o controla. Tem a ver, sobretudo, com a luta pela memória histórica dos que nunca tiveram voz.

*Racionais Mc’s