Organizar a esperança, conduzir a tempestade

A organização dos revolucionários no século 21

Por: Henrique Canary

“Organizar a esperança,
conduzir a tempestade,
romper os muros da noite,
criar sem pedir licença,
um mundo de liberdade.
(…)

Gostemos ou não, o século 21 recolocou perante os marxistas o eterno problema da organização partidária. Se, por um lado, toda a história do século 20 confirmou as enormes vantagens da ação centralizada na luta revolucionária, por outro, a experiência stalinista e as novas formas que adquiriu o movimento de massas neste início de século exigem dos revolucionários flexibilidade e adequação. Não se trata de abrir mão do centralismo democrático, quer dizer, da ação disciplinada, mas de encontrar uma forma de aplicá-lo sob as condições específicas de nosso tempo histórico, em um país específico, com uma cultura política específica.

Diferente do que prega a mitologia stalinista, Lenin jamais pretendeu criar um modelo único de partido válido para todos os países em todos os tempos. Ao contrário, construir partidos revolucionários significa responder a questões profundamente nacionais e específicas, ainda que sobre bases teóricas e históricas universais.

Admitimos, portanto, o que há de universal na concepção leninista de partido: uma organização com fronteiras bem estabelecidas, com critérios de militância, com uma disciplina ativa e consciente para a ação comum. Esta disciplina se assenta sobre uma sólida base ideológica e programática, e se nutre dos laços de confiança e solidariedade na luta. Mas dados esses elementos universais, o que significa exatamente construir uma organização marxista revolucionária hoje? Tal é a pergunta que precisamos responder.

Disciplina e Democracia
Em primeiro lugar, está o problema da relação entre disciplina e democracia, a esfinge jamais decifrada, e que quer devorar a todas as organizações. Creio que neste terreno, é preciso retomar a ideia profundamente leninista de que a disciplina de um partido é garantida, em primeiro lugar, por sua relação com as grandes massas trabalhadoras, pela justeza de sua política, pela solidez ideológica de seus membros. Sem isso, a disciplina é um jugo. É destrutiva, ao invés de construtiva. Ou é simplesmente impossível. O próprio partido bolchevique, mais do que “disciplinado”, era coeso, ideológica e politicamente. Há uma diferença sutil, porém decisiva, entre esses dois termos. Como nos explica o historiador trotskista Pierre Broué em seu livro O Partido Bolchevique:

“De fato, nenhum argumento é mais eficaz na hora de desmentir abertamente a lenda do partido bolchevique monolítico e burocratizado do que o relato destas lutas políticas, destes conflitos ideológicos, destas indisciplinas públicas que, definitivamente, nunca são punidas. São as massas revolucionárias que sancionam as decisões que, por sua vez, tinham sugerido com sua iniciativa. Lenin, que, no calor da discussão, foi o primeiro a chamar Kamenev e Zinoviev de ‘covardes’ e ‘desertores’, uma vez superada esta etapa, é igualmente o primeiro a manifestar veementemente seu desejo de conservá-los no partido, onde são necessários, pois desempenham um papel de dificílima substituição. No fim de 1917, o partido tolera mais que nunca os desacordos, e inclusive a indisciplina, na medida em que a paixão e a tensão das jornadas revolucionárias os justificam e que, enquanto o acordo sobre o objetivo da revolução socialista permanece como fundamento, o acordo sobre os meios para realizá-la não pode surgir a não ser da discussão e do convencimento.”

Como se vê, em se tratando do partido bolchevique, o equilíbrio entre disciplina e liberdade é sempre dinâmico, e até instável. Não há fórmulas possíveis. O centralismo democrático é princípio, não fim. Necessariamente, seus enunciados são genéricos. Quem afirme ter encontrado a “fórmula secreta” do centralismo democrático ou é um ingênuo, ou um charlatão.

Penso que o desafio dos revolucionários neste início de século, no terreno organizativo, consiste em adaptar o princípio geral do centralismo democrático a uma realidade em que as informações circulam a uma velocidade jamais vista na história da humanidade, em que o grau de instrução média do proletariado se elevou enormemente em comparação com o início do século 20, em que a maioria esmagadora da população mundial vive em cidades, depois de uma experiência histórica em que o stalinismo transformou a obediência cega à direção partidária no principal (e depois único) mérito do militante socialista. Ora, o militante revolucionário é também um soldado da revolução. Mas é um soldado rebelde. E se forma como rebelde antes de se formar como soldado. E isso faz toda a diferença.

Por isso, construir uma sólida organização revolucionária neste início de século, capaz de uma ação verdadeiramente disciplinada e coesa, passa por estabelecer amplos canais de debate interno, mecanismos de balanço e crítica da direção e da política partidária. Quando a militância se sente parte ativa da elaboração de uma proposta, a disciplina da organização é naturalmente reforçada. Ao contrário, uma direção que não permite ou não incentiva a crítica a si própria está fadada a ver a disciplina de sua organização se esfacelar.

É preciso romper de uma vez por todas com o mito stalinista da infalibilidade da direção partidária, que penetrou tão profundamente o trotskismo ao longo da segunda metade do século 20. Dentro do movimento trotskista, este mito se transformou na identificação sutil entre a direção do partido e o próprio partido, entre a vontade da direção e a vontade do partido, entre a defesa da direção e a defesa do partido. O resultado não poderia ser outro: as lutas contra a direção passaram a ser encaradas como lutas contra o próprio partido. E portanto, condenáveis. Muitas organizações trotskistas sofreram deste mal. E quanto mais marginais eram, mais forte se manifestavam os sintomas.

Uma organização revolucionária deve ter fronteiras bem definidas porque é preciso saber com que força se pode contar. Um militante socialista, para ser considerado membro de uma organização revolucionária, deve cumprir exigências mínimas: a participação estável nas reuniões do agrupamento, a contribuição financeira regular, a aplicação disciplinada da linha política e outros critérios que se venha a adotar. Quanto a isso, não há dúvida.

Mas os revolucionários não podem ignorar o enorme contingente de simpatizantes da causa socialista que existem espalhados pelo país e que buscam uma relação não-orgânica com os agrupamentos marxistas. Estas pessoas (e no Brasil elas são, talvez, algumas dezenas de milhares) sonham com a revolução social, mas não estão dispostas a entregar suas vidas à militância orgânica. Um partido que pretenda dirigir um processo revolucionário (ou pelo menos ter uma participação importante nele) precisa encontrar formas de integrar essas pessoas. Elas merecem ser mais do que apenas filiadas, fichas em um arquivo. E sobretudo merecem ser mais do que votos em uma urna. Como potencializar essa enorme força social e política? Eis uma questão decisiva em um país com mais de 200 milhões de almas, e onde a esquerda organiza alguns poucos milhares.

Confiança e Solidariedade
Neste início de século 21, quando as relações humanas se encontram completamente degradadas pela força degenerativa do capital, os revolucionários precisam redescobrir e reconstruir os laços de solidariedade e confiança, que só podem existir, em primeiro lugar, se os dirigentes se comportarem como seres humanos melhores, mais gentis, mais delicados. Uma organização onde impere a opressão, a grosseria, a invisibilização e a objetificação sexual das militantes mulheres não pode vencer porque os laços entre os seus membros já estão destruídos antecipadamente.

Os marxistas têm todo o direito de amar o século 20 por tudo o que ele significou na luta por uma sociedade socialista. Mas nos coube viver no século 21, na “era das confusões”, se quisermos parafrasear o grande historiador marxista inglês Eric Hobsbawm. É aqui, neste tempo, que precisamos fazer triunfar o socialismo. E este tempo é indiferente às nossas paixões. Se aprendermos a domar o corcel do tempo, como sempre me diz um velho amigo, temos alguma chance.

Há uma tempestade lá fora. Ela se chama século 21. Se os socialistas saírem ao mar acreditando que navegam um lago tranquilo, estarão condenados ao naufrágio. Se acharem que podem conter a tempestade com algum dizer mágico, lhes ocorrerá o mesmo. Milhares de pessoas ao redor do mundo acampam em praças, atiram pedras (quando não seus próprios corpos) contra tanques, enfrentam desarmados metralhadoras automáticas. É uma era de tanto heroísmo e sacrifício como qualquer outra. Mas isso não autoriza os revolucionários a serem passivos, a esperar a onda perfeita. A luta de classe é como é. Os homens e mulheres, negros e LGBTs, operários e moradores da periferia que hoje lutam por um mundo melhor, por seus salários, seus direitos ou por suas vidas nutrem também, além de um justificado ódio à toda opressão, uma sadia desconfiança, renegam ou não conhecem as tradições da esquerda socialista, desconhecem a força social que eles mesmos representam, ignoram o valor da organização. É preciso chegar até eles. É preciso ganhar a sua confiança. Se ela for conquistada, coisas incríveis acontecerão.

(…)
Retomamos a memória,
na batalha das cidades
empunhamos nossa história,
já não há quem nos detenha,
nós somos a tempestade”.

– “Metal e sonho”, Pedro Tierra –